1.
Escrevo do sul do Brasil, de uma Florianópolis repleta de mangues, cerros e águas azuis que desaparecem na linha do horizonte. Estou a uma distância amigável da praia e, quando não estou em casa, posso facilmente ser encontrada perto do mar.
Moro aqui há pouco mais de dois anos, mas passei por diversos lugares na última década. Se estivesse escrevendo essa newsletter três anos atrás, por exemplo, seria difícil escolher uma única cidade de residência. Quando perguntavam onde morava, respondia “lugar nenhum”. E não mentia. Passei anos vivendo sem telefone ou endereço fixo, percorrendo estradas e cidades e planejando a minha vida de acordo com a duração do visto de estrangeira. Além do Brasil, morei no Uruguai, Peru, Equador, México, Estados Unidos e Portugal.
Apesar das viagens consecutivas terem ficado para trás na minha trajetória, minha escrita é muito marcada pela inconstância e incerteza dessa época. Ainda me sinto muito sem endereço ㅡ sem referências concretas de como viver uma vida, por qual caminho seguir e por qual motivo. Depois de passar tanto tempo no mundo (no mundo como um constante estado de alerta, característico de uma viagem), estar de volta ao Brasil ㅡ impreterivelmente, estar em casa ㅡ é sempre uma experiência antropológica de alteridade, embora, neste caso, o outro também sou eu, é daqui que eu venho.
Que sempre gostei de ser estrangeira, de usar as desculpas da má tradução para não ter que me explicar, não é segredo. Voltei muito maior do que quando parti, de modo que tudo parece pequeno aos meus olhos agora. Os cômodos, as ruas, as perguntas. Me sinto gigante onde uma vez me encaixei bem. Fui com pouco, mas voltei transbordando de bagagem, e tudo em excesso passou a fazer mal. Esta é a hora de descarregar, de despejar tudo na página.
2.
É uma verdade universalmente conhecida que todos que escrevem, uma hora ou outra, investigam seus motivos.
Escrever é um ato tão arbitrário que parece não só necessário, mas imprescindível justificá-lo. Já redigi páginas e páginas sobre o assunto, mas todas as razões acabam se tornando subjetivas demais e, enquanto eu adoro uma boa subjetividade, para os outros pode soar como uma grande esquisitice. Não é preciso ter uma resposta pronta, mas é sempre bom investigar. Afinal, essa constatação pode servir como uma bússola frente a todas as incertezas e dúvidas que nos cercam nessa jornada.
No meu caso, a escrita é inevitável. Sempre acabo voltando a ela, mesmo depois de longos períodos sem escrever. Recentemente, escrevi num poema a seguinte frase: “histórias precisam ser contadas / nós somos só a ferramenta”. Para uma escritora, escrever não é apenas necessário, mas algo que está intimamente ligado à sua identidade, ao seu modo de estar no mundo.
Gloria Anzaldúa, no ensaio “Uma carta para escritoras do terceiro mundo”, também justifica porque é levada a escrever.
Porque a escrita me salva da complacência que me amedronta. Porque não tenho escolha. (...) Porque o mundo que crio na escrita compensa o que o mundo real não me dá. No escrever coloco ordem no mundo, coloco nele uma alça para poder segurá-lo. (...) Finalmente, escrevo porque tenho medo de escrever, mas tenho um medo maior de não escrever.
Na newsletter de dezembro do Clube dos Desajustados, Rute Ferreira disserta sobre os porquês de escrevermos e considera, felizmente, algo que não podemos deixar de lado:
Acredito que o amor é um motivo muito bom para se fazer arte, considerando as condições que a maioria de nós a produz: nas brechas, no meio do emprego que paga as contas, entre os lanches. E não vejo nisso o sentido da idealização, mas do amor como aquilo que nos mantém vivos, criando. Amar a arte, e por isso produzi-la (...)
Se encontrar na escrita é terrivelmente maravilhoso. Terrível porque é um fardo, para dizer o mínimo. E maravilhoso porque a literatura abre portas até então inimagináveis. Como escreve Adriana Lisboa em Todo o tempo que existe, “a vida é um não saber o que virá. De modo que, talvez, mais do que viver para narrá-la, vivamos ao narrá-la. Ou: viver é narrá-la, é compô-la, improvisá-la o tempo todo.”
3.
Sento para escrever após a meia-noite. Estive o dia todo trabalhando e quero finalizá-lo soando as teclas, que é o que mais me dá prazer no trabalho. Enquanto digito, finjo que estou tocando piano, os dedos dançando no teclado com a fluidez de quem toca em ritmo uma sinfonia. Abandonei as aulas poucos meses depois de começá-las, e o piano, sem toque há mais de dois anos, me mira ansioso todos os dias. Não quero que estas teclas façam o mesmo. Por isso, me obrigo a escrever.
Não é fácil. Às vezes, tenho tempo para tudo (como limpar a parte de cima da geladeira ou espanar os livros), mas nunca para escrever. Sei que não sou a única. Essa é apenas uma das muitas razões que me fizeram começar esta newsletter: encontrar meios e motivos para escrever. Além disso, o que vai me manter nos trilhos é registrar o processo de escrita de um livro ainda por nascer.
Hoje, compartilho um anseio e uma oportunidade única: escrever um livro, sonho que me acompanha desde os 15 anos. A chance de poder dedicar-se a isso é rara demais para tratá-la como qualquer outra segunda-feira.
Nos últimos meses, me dediquei ao curso As Engrenagens do Romance, de Carol Bensimon, e desenvolvi uma ideia que já tem estrutura, embora lhe falte muitas cosas más. O maior empecilho, no meu caso, é a autoconfiança. Não é à toa que Zadie Smith diz:
Escrever um romance é uma espécie de truque de confiança. A principal pessoa que você tem de convencer é você mesma.
Mas falarei mais sobre isso em duas semanas. Espero ter a sua companhia nessa jornada.
Com carinho,
Dayanne