1.
Estou no mar. O som da água se movendo ao meu redor aplaca qualquer outro ruído. Assisto as pessoas que caminham pela praia e quando me canso, olho para cima, pernas e braços fazendo o trabalho de me manter à tona. O céu adquire um tom formidável a essa hora, e não sei dizer como nos acostumamos tão facilmente com isso. O horizonte é marcado por cerros que despontam aqui e acolá e uma ilha majoritariamente verde-escura ao norte. Quão profundo seria o mar daquele lado? Poderia nadar e descobrir, se tivesse coragem suficiente.
2.
Não tenho a coragem de me denominar escritora, não ainda. Escrever carrega responsabilidade demais, como se colocássemos a literatura num pedestal e de lá ela nos mirasse e ditasse quem pode, ou não, se dedicar a escrever. Como disse recentemente Andrea del Fuego, há uma cobrança para ler literatura, mas não para escrever literatura, “talvez pelo fetichismo de uma autoria genial e ilhada.”
Depois de mais de 15 anos escrevendo, e tendo ultrapassado o lugar de apenas aprendiz, hoje me encontro no espaço do quase, como uma quase-escritora. Sei que não sou a única. Ao meu redor, pipocam relatos de mulheres que passam por experiência similar, como se fosse muita audácia nossa querer nos intitular escritoras.
3.
Por muito tempo, a escrita esteve apenas nos bastidores da minha vida, esperando brechas para se enfiar no palco principal. Como muitos, comecei a escrever na adolescência. Nasci em Porto Alegre em 1993, e não houve nada de muito especial na minha infância, a não ser pelo fato de que as narrativas sempre tiveram um lugar especial em mim.
Escrever foi a única atividade em que me encontrei desde cedo, e ela se tornou casa, no sentido mais bonito da palavra. Falo mais sobre isso em um texto chamado Sensível demais:
Minha família nunca se interessou pelas longas horas que passava fazendo soar o teclado até eu ganhar algum destaque nacional. Aos 15 anos, no auge da minha incipiente carreira literária e do cabelo tingido de rosa, um texto meu foi escolhido para ser publicado em uma revista adolescente que eu venerava. Eu a comprava todo mês e lia cada página religiosamente. Sonhava em trabalhar na revista, então ter meu texto publicado ali parecia um avanço considerável nesse caminho. Aí, porque ela precisava assinar um termo de consentimento, minha mãe ficou sabendo que eu escrevia — e não só isso, que escrevia bem e alguém queria me publicar.
A revista chegou nas bancas no próximo mês com meu nome e foto nela, e a mãe não poupou gastos. Comprou uns vinte exemplares e foi distribuindo para todos que conhecia, se gabando do meu talento como se soubesse dele há muito mais tempo do que de fato sabia, como se o tivesse cultivado. A comoção não foi menor no resto da família. Especularam que eu escreveria romances, que poderia registrar para a posteridade a história dos meus antepassados. Me diziam em tom de cumplicidade, em meio à sobremesa, que não era todo mundo que sabia escrever como eu. Pela primeira vez, fui alvo de alguma atenção e orgulho.
A partir desse momento, quando perguntavam o que eu planejava fazer com a minha vida, eu não tinha dúvidas, dizia que seria escritora sem saber que já o era, pelo simples ato de sentar e escrever, após as aulas, sem nunca ninguém me ordenar a fazê-lo, mas pelo puro prazer de colocar palavras atrás das outras, relatar acontecimentos com detalhes palpáveis e criar reviravoltas novelísticas. Escrever foi, na verdade, a única atividade artística em que me vi sair moderadamente satisfeita. Com todas as outras eu me frustrava. Tirava notas medíocres nas aulas de costura, e nas oficinas de carpintaria e argila não tinha paciência para criar com as mãos. Gostava de ler e, por isso, comecei a escrever, como se fosse um caminho natural, sem racionalizar o motivo. Às vezes, no silêncio, a sós com os papéis e as canetas, sentia que havia nascido pra isso, um sentimento que, como onda, se refaz, se reinventa toda vez, e nunca encontrou em mim resistência. Sempre fui de natureza sensível demais, dizem (como se fosse mau presságio para uma vida ainda incipiente). Para ser escritora, no entanto, me parece tremendamente conforme.
4.
Voltei a escrever. Outra vez, eu sei. Meus movimentos têm sido bastante cíclicos. Escrevo, paro por um tempo, retomo. Sempre que volto a escrever depois de um período de hiatus, sinto que estou criando um novo álbum. Tenho novas referências, uma mente fresca.
Comecei esta newsletter como um desafio para mim mesma: registrar o progresso da minha escrita, porque me calhou de escrever um romance. Como não sei nada sobre escrever romances, meu processo inevitavelmente vai passar pela pesquisa e estudo.
Mas por que fui atraída pela ideia de um romance? Não por acaso, guardo a vontade de publicar um livro desde que comecei a atividade da escrita. Digo publicar porque escrever é algo dado, enquanto mostrar o que escrevo é o pulo do gato. Por isso se dizer escritora, que exige de certa forma a publicação e o ser lida, é ainda tarefa bastante tortuosa. Sou, assim, uma escritora platônica - escrevo, e na maior parte do tempo apenas sonho em escrever, mas nunca de fato abro espaço para fazê-lo.
“Publiquei 2 livros, escrevo uns textos aqui e ali na internet, mas, na maior parte do tempo, todas as ideias literárias que eu tenho nascem e morrem dentro da minha cabeça. Não chego a colocar nada no papel. Sou uma escritora platônica, uma escritora em potencial. (...) Colocar a escrita no mundo, bem ou mal, exige uma espécie de desnudamento” escreveu Maíra Ferreira na sua newsletter.
Recentemente, concluí o curso da Carol Bensimon sobre escrita de romances. Elaborei algumas cenas, fruto dos exercícios do curso, e então lembrei que escrever ficção é algo mágico. Gosto especialmente como ela comunica nosso próprio mundo de uma forma delicada, como as histórias carregam força, poder, transformação, dizem algo que não somos capazes de dizer sozinhos ou em uma frase só. Foi isso que me trouxe para a literatura em primeiro lugar.
Já em segunda análise, também aprecio demais a forma como o processo criativo me toca, transforma, desafia. A escrita é minha linguagem de amor, minha forma de expressão. Gosto do que ela e seu processo dizem sobre mim; afinal, toda escrita é autobiográfica. Que escrever é uma atividade solitária, todos dirão, mas ninguém parece mencionar que ela também é uma atividade íntima. É necessário olhar para dentro para escrever.
5.
Vi criarem por aí um desafio, um plano: um ano para virar escritora. Seria algo como “um ano para escrever o seu livro”. Similar aos desafios escreva-seu-livro-em-um-mês, somos atraídos pela ideia porque escrever sempre parece figurar por último na nossa lista de afazeres. É preciso encontrar motivos e compromissos para escrever, senão o ato se torna quase sempre evitável, como uma coceirinha na cabeça que posso simplesmente ignorar.
Li em algum lugar que disciplina tem mais a ver com autoconhecimento, tentativa e descoberta, do que com rigidez e produtividade. Ou seja, a minha disciplina pode parecer muito diferente da sua. No meu caso, talvez não se trate de escrever todos os dias, ou todos os meses de um ano. Se trata de me manter criando e estabelecer um compromisso comigo mesma e com os outros. Talvez por isso eu tenha sido levada a me inscrever num curso de longo prazo em Escrita Criativa. O que eu busco nele é principalmente a estrutura ordenada, que me motive a escrever.
No clima das resoluções para o início de 2023, acredito que este será o ano em que (finalmente!) escreverei o meu livro. Vai dar certo? Em todo caso, sempre posso dizer que minhas coelhas roeram as páginas — dado a chance, elas certamente o fariam.
Espero te ver novamente em alguns dias.
Com carinho,
Dayanne