1.
São três horas da manhã quando desperto. Ainda chove. Posso ouvir as árvores do morro pingando, embaladas pela camada fina que cai das nuvens. Qualquer coisa poderia acontecer agora, mas aqui tudo está quieto.
Vejo luzes no apartamento da frente. Estes edifícios são repletos de grandes portas de vidro corrediço que deixam tudo à mostra. Quando as cortinas estão corridas, é possível assistir à TV da vizinha diretamente do meu sofá.
Eu e ela já nos encontramos mais de uma vez na madrugada. Estou vivendo neste endereço há um ano e não sei muito sobre sua história, mas logo aprendo pedaços da sua rotina através de momentos de cortinas abertas, um ou outro olá amigável quando nos encontramos aguando as plantas na sacada. Ela, com seus 90 e tantos anos e a vida sorrateiramente fechando a porta atrás de si, e eu, no limiar dos 30 e com diversos capítulos por escrever.
Já me peguei diversas vezes assistindo-a de longe enquanto passava o café na pia da cozinha. Tento não imaginar o que viveu, porque um dia tomarei a coragem de convidá-la para um chá com a certeza cega de que ouvirei tudo em primeira mão - arrependimentos, desejos, conselhos e, sobretudo, sonhos cumpridos e aqueles que ficaram para trás.
2.
Quando digo que meu maior sonho é escrever um livro, estou mentindo. Meu maior sonho, na verdade, é publicar um livro. “Existe diferença?” você pode perguntar. Sim, existe e, na maioria dos casos, é ela que decide quem vai realmente se inscrever na tremenda maratona que é a preparação de um livro.
Escrever é para si, enquanto publicar é para o ego. Anne Lamott, no popular Bird by Bird, fala brevemente sobre sua desilusão com a publicação, o que, dado o meu maior sonho, apertou meus botões. Como aspirantes a autores, imaginamos que a publicação será um momento decisório, um verdadeiro marco na nossa história, dividindo a vida entre antes e depois. No melhor cenário de todos, trombetas soarão e os críticos proclamarão nosso trabalho um clássico contemporâneo. Mas esse sonho fica quase sempre nesse patamar, o de fantasia. Acontece com a maioria dos escritores e provavelmente acontecerá comigo. Isso porque a transformação que estamos buscando não se dá ao publicar, e sim ao escrever, durante e depois do processo criativo.
Publicar um livro é um sonho comum, e vai estar na lista de muita gente, já que este é o momento de lucirse, a linha de chegada depois da árdua corrida. Já escrever um livro é a parte que ninguém vê, do trabalho duro, da persistência e dedicação, talvez um pouco de talento, e sobretudo de sacrifícios, que nem todos levam em consideração.
3.
Há quem afirme que ser lida é a pior e a melhor parte de escrever. Há quem escreva apenas para si e há quem, como eu, espere avidamente pelos leitores. Para explicar minha preferência, apelo para a sua primeira consequência: ser lida nos conecta com o outro. A escrita é uma ferramenta incrível de conexão e eu gosto de usá-la dessa forma, para tocar além do que meus dedos alcançam. O que eu escrevo ganha nova vida ao ser lido, não importa o recorte de tempo.
4.
Mais de uma década atrás, li numa entrevista com a escritora Meg Cabot sua resposta para a conhecida questão “qual conselho você daria a quem deseja seguir uma carreira na escrita?”
O conselho que ela deu realmente não vem ao caso, o que ficou comigo foi algo além. Entre outras coisas, ela dizia que está tudo bem (it’s ok) se decidirmos esperar para nos dedicarmos à escrita. Ela falava para um público jovem, é claro, mas também com o entendimento de que a escrita é um trabalho demandante, que requer muito tempo, e às vezes vai nos privar de outras oportunidades. É preciso escolher, não se pode ter tudo. Provavelmente será preciso abrir mão de coisas que você ama para fazer aquilo que você ama ainda mais. No meu caso, escrever.
Essa frase sempre ficou comigo - está tudo bem esperar - por bem ou por mal, talvez como uma desculpa para não tornar a escrita uma atividade constante na minha vida. Mas a verdade é que escrever requer, sim, um bocado de tempo e experiência de vida. E por mais que possamos e devemos sempre recorrer à pesquisa, grande parte da nossa escrita e dos nossos temas vêm de quem somos, do que vivemos. Entender isso é o começo do caminho.
Sei que não existe momento ideal para começar, por isso decidi parar de adiar. Escolhi, assim como escolhi a cor das minhas paredes entre tantas outras. A escolha é minha, e a escolha é tudo.
5.
Decido que vou escrever um livro. Por onde começo? Escrever uma narrativa longa exige, antes de tudo, encontrar a própria voz, por mais clichê que isso soe. "Encontrar a própria voz" quer dizer encontrar a nossa marca, abrir nosso próprio caminho, descobrir os temas que nos atravessam, e também os sentimentos e mensagens que queremos transmitir. Uma vez descoberta, a nossa marca será tão visível para os outros como o modo que seguramos a caneta.
Demorei a entender isso, mas admito, em retrospecto, que minha escrita sempre circula ao redor dos mesmos tópicos. Não por acaso, dizem que escrevemos sobre nossas obsessões. Acontece que eu fiquei obcecada por uma cidadezinha de cruce no interior do Uruguai. Vivi por lá durante quatro meses em 2018, no interior de uma família local, da qual eu acabei fazendo parte, o que foi uma ótima imersão nos contratos sociais e modos de fazer de uma cultura até então pouco conhecida por mim. Ainda não consigo colocar o meu dedo exatamente no que me leva a escrever sobre esse núcleo, além de uma curiosidade estranhamente peculiar sobre seus personagens e histórias de vida. Mas não posso negar que também vem da minha própria experiência nesse lugar, de ser estrangeira em território desconhecido.
O lado bom de ser escritora é que nada, por mais aleatório que possa parecer, vem a ser trivial. Tudo vira material para escrita. Isso é maravilhoso, porque nos convida a viver de forma consciente e atenciosa. A forma como as pessoas falam, cada um com seu sotaque e vocabulário próprios, o jeito que nos comunicamos com as mãos, com objetos, etc. Como escritora (e antropóloga!) sou convidada a notar. Com olhos de estrangeira, tudo fica ainda mais evidente.
6.
Para fechar um texto que falou de tudo um pouco, trago um pouco do que prometi ser o centro dessa newsletter: o processo de escrita. Abaixo seguem algumas anotações do espaço e do ambiente que estou criando para a história, que se passa nessa cidadezinha no interior do Uruguai.
Espero te ver novamente em alguns dias.
Com carinho,
Dayanne
Outro dia eu estava pensando nisso da escrita nos tornar mais atentas: nada, por menor que pareça, é inútil; quase tudo pode ser material pra ficção. Adorei essa edição e estou ansiosa pra saber mais sobre essa cidadezinha do interior do Uruguai (morro de vontade de conhecer aquele país)