1.
Cruzo o Uruguai da costa sul até a região centro-oeste, chegando quase na divisa com a Argentina e o Rio Uruguai. Assim que o ônibus deixa os bairros periféricos de Montevidéu para trás, a Ruta 3 se torna uma reta sem fim à vista, rodeada de campos, plantações de soja e rebanhos bovinos que parecem ter estado no mesmo lugar há centenas de anos. Havia chegado na capital dias antes, tendo tido tempo para me situar, perambular pelo seu centro-histórico, comer tortas fritas recém feitas e alfajores de dulce de leche.
O percurso de quatro horas me leva ao pequeno pueblo de Young, no interior do país. Quando o ônibus começa a diminuir a velocidade, o motorista avisa os passageiros onde estamos gritando “Young” em castelhano. Soa como “Xun”. Sou uma das primeiras a desembarcar. Assim que piso no asfalto, uma rajada de ar quente me envolve numa típica saudação de boas-vindas. Não é a minha primeira visita e já estou familiarizada com o calor interiorano nesta época do ano.
Da intersecção das rodovias nacionais 3 e 25 nasceu o vilarejo, sendo ponto de passagem e mais tarde consagrada a capital agropecuária do país. Antes de ser batizada em homenagem a Carlos Young, engenheiro responsável pela construção da via de trem Algorta x Fray Bentos em 1910, seu nome era bastante mais poético: Los Cuatro Vientos.
Estou aqui para reencontrar metade da minha família, a metade com quem escolhi casar. Embora eu tenha conscientemente escolhido fazer parte deste núcleo, o pano de fundo que vem atrelado a ele divide comigo uma relação que transita entre o encantamento e o desespero. Por não saber como processar estes sentimentos nada ordinários, escolhi fazer deste cenário a primeira engrenagem do meu romance.
Somos deixados em uma parada improvisada onde se reúnem alguns taxistas para receber os viajantes e na qual me abrigo do sol inabalável das duas da tarde. A sensação é de que fui teletransportada da viva Montevidéu, com sua rodoviária movimentada, bondes lotados e ventos de tremer o queixo, para outro universo totalmente.
Eu espero junto a alguns passageiros segurando termos e mates enquanto outros partem a pé pela estrada. Quando consigo retirar minha bagagem, o ônibus parte para seu destino final e eu subo num táxi velho com os assentos gastos. Mais alguns minutos e estarei no coração de Young. Sinto que este país tem o potencial desenfreado para ganhar o título de mais tedioso do mundo. Para onde quer que olhe, o horizonte é igual a uma pintura de único plano: planícies de campos onde nada cresce, estradas que cortam o verde e a imensidão angustiante de um céu sempre azul.
O ar de letargia continua quando adentramos as ruas largas da cidade. Casas de concreto com telhados retos e janelas pequenas alinham-se uma ao lado da outra em tons terrosos. Motos e bicicletas cruzam as intersecções da avenida principal, onde pedestres miram as vitrines debaixo de toldos encardidos. A essa hora, as praças estão vazias. Viro à direita na única cafeteria do pueblo e sei que estou perto do destino final, que na verdade é só o começo disso tudo.
2.
Uma personagem estrangeira situada em um lugar desconhecido é quase sempre o início de uma boa história. Não à toa, a premissa “um estranho chega à cidade" é um dos recursos mais utilizados na criação de histórias, seja na literatura, seja no cinema, ao lado do mais conhecido “alguém parte em uma jornada”. A partir destas duas premissas surge a trama subsequente: o que será que vai acontecer agora?
Quando trazidas para o ficcional, ambas podem gerar consequências interessantes. Ainda assim, a conhecida estranheza que uma estrangeira causa ao chegar “na cidade” sempre me pareceu mais intrigante. Afinal, como escreveu Carol Bensimon em seu livro de crônicas Uma Estranha na Cidade: “a introdução de um elemento novo em um ambiente familiar tem grandes chances de desarrumar a ordem das coisas para depois rearranjá-las de outra forma.”
Sempre gostei de admirar o novo com olhos de estrangeira, e posso dizer que a cidadezinha de “Xun” certamente me causa sentimentos demais. Nela, sou a estranha que chega, mesmo quando estou chegando pela vigésima vez.
Nasci e vivi a vida toda em cidades grandes. Young foi o primeiro pueblo estrangeiro com o qual tive contato - depois se seguiram outros -, e talvez por isso tenha percebido tanto as nossas diferenças. Cheguei ao centro de uma família local e fiquei inserida na sua dinâmica durante meses. Para uma antropóloga recém-formada, eu tinha um prato cheio em minha frente. Minha cabeça estava constantemente registrando os modos de falar, ouvir, estar, enquanto eu sentava à mesa para comer fideos com tuco e beber uma mistura duvidosa de cerveja com coca-cola. Ser estrangeira nesse núcleo, sabendo que estou fazendo tremer as bases da estrutura local apenas por estar ali, sempre me encantou.
Minha ânsia de me desprender de mim mesma para então tornar-me o outro já vinha mesmo antes de cursar Antropologia Social, porque antes disso eu escrevia ficção. E escrever ficção é um exercício de alteridade sem precedentes. Provar diferentes sapatos torna-se essencial para a criação de personagens e universos convincentes.
3.
Estou no processo de criação do meu primeiro livro e ainda não sei muito sobre ele. Não me dói admitir que ainda não estou escrevendo, de fato, porque há tanto mais no processo de um livro do que o escrever. É verdade que já escrevi algumas cenas, idealizei tantas outras, e sei os temas que gostaria de tratar. Mas, principalmente, já escolhi o pano de fundo da história (um pueblito no interior do Uruguai) e a narradora (uma estrangeira).
Também é verdade que a escritora conhece muito pouco dos seus personagens antes de começar a escrever. Não pensamos previamente todas as suas características e o que faz o personagem é o modo como ele interage com a paisagem, ou seja, o espaço e os acontecimentos. A situação vem primeiro, os personagens, depois. Dessa perspectiva, embora possamos desenvolver uma lista de atributos e características previamente, criamos os personagens no desenrolar do texto, dando explicações à medida que elas são necessárias, e não antes. O que for essencial vai aparecer naturalmente.
Quando me pergunto porque ainda não comecei a escrever, penso em todas as decisões que temos que tomar antes de começar. Há um consenso no mundo da escrita criativa que separa dois tipos de escritores: os especialistas em planejamento, os planificadores, e os especialistas em gambiarras, os improvisadores.
Particularmente, sou péssima em improvisar. Já tentei diversas vezes, mas acabo deixando o livro no meio do caminho, justamente porque não sei como continuá-lo. Aprendi com o erro, e hoje planifico antes de começar, mas não a ponto de perder espaço para alguma improvisação no caminho. A vida, e a escrita de um livro, inclusive, raramente acontecem dentro das linhas do planejamento.
É estranho pensar no lugar antes de pensar nos personagens que o habitam? Talvez. E talvez ele seja um ponto de partida. Me considero bastante ingênua no processo, afinal, sou marinheira de primeira viagem e há um universo para aprender, mas entendo que não há receita de bolo para a criação de um livro.
4.
Quando o táxi para em frente a casa de tijolos à vista, sei que estou adentrando um novo capítulo da minha história com Young. Nunca serei uma local, isso é certo. Meu sotaque e aparência me denunciam. A cada nova visita, contudo, deixo um pouco mais de mim e transformo um pouco o local. Uma estranha chega à cidade e, inevitavelmente, ela nunca mais será a mesma.
Até a próxima,
Dayanne
Nunca estive em Young, acredita?? Tô te esperando pelas bandas de Montevidéu pra gente tomar aquele cafezinho :)